Sunday 1 May 2011

convoco a dor para o meu concílio
os deuses todos olham serenos e impiedosos
ilumino-me em pequenas células
e formo um corpo refletido no vidro dos seus olhares
para que a dor entre e me apague
e os deuses se esqueçam de que estou

apaga-se tudo
sobra a dor
e a vida galgada. a luz
não se desfaz nem desanima
e mira-se no vidro da porta
encantada com a nova roupagem

os deuses que me prenderam nas lajotas
que serve de piso à minha dor
riem-se dos meus esforços líquidos
dos meus balbucios afogados
das minhas tentativas de sair de dentro da água sólida feita de pedra
e expulsar a dor de dentro da luz das células do corpo que estava formado

nenhuma das minhas mãos atravessa os tijolos
e de tão nítidos posso ver através deles
os meus olhos estão no rosto da minha dor
e não no meu corpo sem luz e preso ao chão
os meus olhos não entendem nada
e nada os perpassa
nada em nenhum dos lados em que existem

os deuses permanecem sentados
parecem adormecidos
indiferentes, cegos, alheios
ao desespero que se apodera de cada uma das minhas artérias feitas solidez
cada tubo onde antes borbulhava sangue está vazio e seco
seco seco seco moribundo e sem viscosidade
cada tubo abre-se em bocas miúdas que se chupam a si mesmas
bocas sem dentes, de grutas escavacadas, pele translúcida frágil

todo o meu corpo são tubos
e todos os tubos estão secos

a minha dor está sentada ao lado dos deuses
e reparo que me olha com pena
os deuses também reparam
os deuses também se inclinam
como a minha dor
em direção à secura de todos os tubos de todas as partes do meu corpo vazio

a minha dor levanta-se e chega-se até onde estou afundado em barro seco e duro
a luz que é minha e está com ela
a luz que eu acendi e cuidei e me deixou aqui no escuro
atravessa a lâmina que me separa, e me assalta, me deseja, me preenche de ar e luz
e faz com que cada tubo se engula a si mesmo e deixe de ser boca para ser tubo
e mais nada:
torrente inesgotável de sofrimento
embrulhado em sangue

borbulha apressado através de todos os meus pequenos e grandes tubos
avança qual avalanche
morde-me e afoga-me
e eu não sou mais o preso debaixo do chão
mesmo ainda não tendo ainda a luz que me torne estrela refletida no vidro dos olhares dos deuses
a dor precisa invadir-me, quebrar-me, apoderar-se de tudo e
com todos os nós que se precisam,
quando não se quer que o outro abandone e seja ingrato

assim que adormecer
será o que a minha dor fará

e de manhã acordarei a mesma,
com a mesma porcentagem de dor azeda e simples
a mesma incompreensão escorrendo da madrugada para dentro de um dia
simples
mais um
dia
simples

Tuesday 8 March 2011

Fragmento - III

o pulso e suas dobras
fecharam-se por dentro
dos olhos guardados

tudo tem aroma:
o calor, a pressão, o tato
o movimento súbito suspenso

o pulso tem o peso da dormência inerte

Sunday 6 March 2011

Fragmento - II


­­­­­­­­­­o pulso
é ave
dentro do quarto fechado

dentro do voo imóvel
dentro do espanto das nuvens
entre a colisão das montanhas
diante da pressa dos dedos

o pulso é ave
lenta
densa
feita só silêncio

Saturday 5 March 2011

Fragmento - I

o pulso
ave em movimento
é a parte aérea do corpo
arco tenso

acima da nuvem
numa fresta de feixe
de feno recém colhido

o pulso
incandesce
feito coluna recolhida em suas asas

Thursday 4 November 2010

Saturday 30 October 2010

mesmo
quanto te escapas
quando te esquivas
fluem através de ti as fibras do meu desejo
e
todos os meus músculos exalam o teu afeto

Friday 29 October 2010

recolho-te em migalhas
para preencher-me as paredes

abro todas as portas por onde passes

vou morrendo e nem percebo

Saturday 2 October 2010

quero teu corpo
teus dedos fáceis
teus céus como meu olhar tão límpido
tuas curvas que desconheço
tuas dobras que imagino em noites vazias
sem teto

teu gosto entre meus dentes fartos
teus traços nas minhas cruas marcas
tua sombra abrindo meu sonho
o desespero de não ter nada em volta


indefesa
como um poço inerte

Saturday 31 July 2010

imprimo o que resta de ti
para desdobrar-me depois
e saciar-me sozinha
as estrelas do meu teto espelham o formato dos teus olhos

escapo do teu medo num galope de cinco pontas
presa ao teto que as minhas paredes amparam